Here, at the end of all things
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Here, at the end of all things
[ prólogo ]
forward yesterday,
makes me wanna stay
A fumaça do cigarro desvanecia na tarde silenciosa, escurecendo devagar sob os últimos raios de sol, enquanto Demian Hasse tentava não pensar no que aconteceria, nem no tremor que tomava conta das mãos.
Estava atolado na imundície até o pescoço, afundando nesta areia movediça. Quanto mais tentava achar uma saída, mais sufocava abaixo da sujeira.
Desde que se conhecia por gente suas companhias eram as mesmas, sua vida sempre a mesma, seu comportamento o mesmo: o trombadinha de Saffron andando com os mulatos da periferia, roubando para ganhar a vida, vivendo o hoje na incerteza do amanhã. Crescera como vagabundo, projeto de bandido, celerado que mais cedo ou mais tarde acabaria como corpo num necrotério, tido como indigente, enviado para pesquisa nos grandes centros de Medicina. Ninguém choraria sua morte. Ele era desimportante demais até para ser número em uma estatística.
E não era como se ele morasse nas ruas ou não tivesse família como aqueles com que se metia, afundados nas drogas, kamikazes pela vida só por não ter nada a perder. Era só que sua família já não importava mais. Sua casa não importava mais. Não com um pai bêbado desperdiçando o pouco que tinham, espancando os filhos até deixá-los desmaiados, as caras deformadas, em meio a poças de sangue para serem achados pelos vizinhos e mandados às pressas aos hospitais. Não com estes cretinos frouxos e fracos que eram seus irmãos, incapazes de dar voz aos seus medos e ira; incapazes de se levantar contra o velho violento e abusivo. Não com esta vida de pobreza onde se vive sempre no presente porque futuro é sonho distante.
Demian tinha dezesseis anos e raramente voltava pra casa. Dormia apinhado ora em cortiços, ora em trapiches abandonados, ora nas sarjetas frias sob a luz das estrelas. Comia o pão que o diabo amassava, mas ainda era melhor do que enfrentar seu velho e seus demônios. Se enfiava em toda sorte de roubada, lutando com unhas e dentes para terminar o dia vivo e bem, longe dos olhos de agressores, da polícia e das gangues rivais.
Agora tremia de nervoso, as mãos suando frio, os cigarros sumindo na carteira. Já havia estado em brigas de gangue antes, abrindo caminho através de sangue e suor, mas nunca temera tanto seu destino. Nem quando a lâmina afiada de um canivete sangrara seu braço de fio a pavio. Nem quando estivera sob a mira dos canos duplos de uma espingarda, correndo com o vento nos pés. Não estavam mais metidos em furtos pequenos ou retomada de território. O idiota autoproclamado líder queria agora meter-se num negócio grande, coisa mesmo pra alavancar a vida, roubando mercadoria contrabandeada. E o carregamento estava vindo lá do norte, trazido em compridos caminhões-baú, escoltado por Rockets.
— Está quase na hora. — Demian murmurou enquanto se levantava, trocando de pés, compulsivo — Quase na hora.
Subiu na mobilete enferrujada que seus comparsas arranjaram. Era um pedaço de lixo, montes de engrenagens caindo aos pedaços, que engasgou e gemeu como uma coisa velha assim que Demian tentou dar-lhe ignição. Na terceira vez, funcionou. Só o pensamento de que daria o maior golpe de sua vida sobre aquela coisa deixava o garoto todo gelado. Ainda assim, Hasse pôs o capacete e partiu.
As luzes da cidade piscavam como centenas de olhos incandescentes, todos o espiando a cometer seus pecados. Os grandes pulmões cancerosos das indústrias cuspiam gordas nuvens de fumaça para o céu plúmbeo do quase-noite. Os carros que iam e vinham eram gânglios nervosos intumescidos nas muitas estradas como veias da cidade-demônio de Saffron. Naquele momento, costurando pelo tráfego na Rodovia Blask, Demian sentia na espinha um arrepio. E o arrepio dizia que seria Saffron a engoli-lo inteiro.
Dirigiu pelo que pareceu uma eternidade; tempo suficiente para que as costas doessem e a bunda ficasse quadrada. Tempo suficiente para que o céu nebuloso fechasse, guinando na direção de uma feia tempestade elétrica. Tempo suficiente para se arrepender de toda a ideia.
Foi então que viu o sinal de luz vindo do meio das árvores que costeavam o asfalto. Era algo tão fraco que uma vista mal treinada passaria batido em meio a todo o brilho cegante da cidade. Mas Demian esperava por isso. Ansiava por isso. Droga, ele só queria fazer o que viera fazer e dar o fora dali. Guiou a moto até as árvores e encostou. Um garoto magricela veio ter com ele.
— Vamos levar aquele caminhão ali. — O molequinho apontou para o menor dos caminhões do comboio — Tu vai na frente e para os caras.
— Onde vocês vão estar, velho?
— Nós vamos dar a volta na rodovia pra fechar o cerco. Tu só tem que parar os caras.
Furtivo como viera o menino se fora, as árvores compridas ocultando sua figura magra.
Hasse desceu a viseira do capacete, voltando a inclinar-se sobre a motocicleta. Acelerou para o asfalto, sentindo o vento rascante cortar seus braços nus, seus joelhos feridos e o nó em sua garganta apertar sem piedade. Os carros que seguiam atrás dos caminhões estavam atulhados de Rockets. Os próprios caminhões-baú exibiam o logotipo da Silph. Co. e Deus sabia que perigos e riquezas o aguardavam lá dentro.
Demian tinha as mãos empapadas de suor. Calafrios subiam e desciam sua espinha, chacoalhando-a como um graveto. Seguiu em frente. Apesar de tudo, em frente. Já não havia volta.
Emparelhou com o caminhão alvo até poder sentir os bafejos calorosos da máquina fumacenta. Buscou, o mais que pôde, manter-se ao nível da porta. Tentativamente, ergueu seu torso. Então, os pés. Foi-se erguendo devagarzinho até estar quase como em pé sobre o assento. Apenas suas mãos ainda o mantinham no controle da moto. Sentiu os primeiros pingos de chuva caírem grossos sobre seus braços, pernas e roupa. Logo a pista se tornaria escorregadia. Logo ele não teria mais oportunidade nenhuma.
Então, num rompante, o menino empurrou o mais que pôde o guidão da mobilete antes de saltar como doido para cima da porta do caminhão. Estatelou feio sobre o metal, as unhas arranhando a lataria, o corpo sentindo todo o peso da gravidade e da inércia sugando-o, tentadas a fazer daquele momento o último. O grito ficou enterrado na garganta; jamais se libertou. As mãos agarraram a maçaneta. A moto espatifou-se sob as grandes rodas, desfeita em estilhaços que zanzaram pela estrada e rebentaram na direção do tráfego. Uns destes pedaços quase acertaram o menino em cheio, mas o próprio motorista desviava deles para conseguir manter-se na estrada.
Foi quando Demian abriu a porta e puxou um pequeno revólver cromado que o homem se deu por vencido. O caminhão parou. O tráfego caótico continuava.
— Sai, perdeu, perdeu! — A mira do revólver oscilava entre o motorista e seu passageiro. — Pro chão, pro chão!
Os dois homens saíram do caminhão, as mãos para cima, submissos à vontade de um garoto. O cano da arma – que podia muito bem ser de brinquedo – dançava de um para outro, trêmula, mas naquele momento Demian se sentia seguro. Tudo daria certo. Ele conseguiria se safar dessa. Um sorriso tentativo surgiu por baixo do capacete. Suas mãos de menino pararam de tremer. Tudo estava bem.
Estava bem antes do ZAP!
A dor foi a de uma chicotada, açoitando-o nas mãos, acertando-o nos punhos; arrancando a arma de seus dedos. Hasse não teve tempo de ver o que o acertara até o revólver já estar muito longe de alcance.
Fora uma planta.
Algo como uma flor gigante em forma de sino, com uma boca flácida trazendo dois dentes afiados. E ao lado daquela aberração botânica estava um homenzarrão vestido de preto, quepe de lado e estampado no peito o símbolo da maior organização criminosa do país.
Um relâmpago iluminou o sorriso sinistro que fez toda confiança de Demian ser lavada pela chuva. Havia se tornado branco como papel por trás do capacete. Suas pernas tremiam. Sua boca tentou chamar por socorro, mas mal as palavras formavam, morriam.
— Então o filhote quer brincar com os cachorros grandes. — Numa voz de trovão que o assustava mais do que estar sob a mira de um revólver.
Em sua idiotice, deu-lhe as costas e desatou a correr.
— Ah, mas não vai mesmo!
BANG!
Um tiro e Hasse fora ao chão, o joelho esquerdo lancinado, o sangue escorrendo com a tempestade. E ainda outro disparo, que acertou-o no direito, forçando todos os gritos suprimidos para fora, misturados ao som da chuva e ao ribombar dos trovões.
Em seu desespero, arrastou-se. Sob o som de risadas e zombaria, rastejou. A dor rasgava sua carne, torturava os tecidos feridos, calcinava seus nervos. Os dedos se enterravam na estrada. O rapaz todo bracejava por segurança. As risadas jocosas sobrepujavam os trovões.
No fundo de sua mente pensou ter ouvido um estalido, algo que soava como CLAC!, mas em sua angústia não teve tempo para atinar com o que quer que fosse. Seu corpo inteiro era um violão desafinado, músculos como cordas muito duras soltando notas de estremecimento à espera da morte.
— Vai Nidoking.
O chão tremeu.
Algo grande estava vindo.
As pesadas passadas do monstro vibravam através da estrada, mandando espasmos de medo na direção do menino caído. Demian conseguiu apenas voltar-se para cima, a boca abrindo em um grito. Mas o grito silenciou pela pisada do gigante em seu peito, esmagando-o, forçando todo o ar para fora. A pata tornou a erguer-se no ar e Hasse soube que morreria ali, como o nada que sempre fora, assistindo ao seu fim enquanto aquela pata como martelo baixava sobre sua cabeça. Quando o Nidoking pisou, seu capacete esmagou; lascas da viseira enterrando em seu olho e face e o sangue vertendo sinuoso. Uma segunda pisada e seu nariz quebrou, explodindo em um vermelho rubro que inundou sua boca e escorreu por seu queixo. Uma terceira e as luzes da consciência falharam.
Desmaiou.
what they said was real,
makes me wanna steal
Estava atolado na imundície até o pescoço, afundando nesta areia movediça. Quanto mais tentava achar uma saída, mais sufocava abaixo da sujeira.
Desde que se conhecia por gente suas companhias eram as mesmas, sua vida sempre a mesma, seu comportamento o mesmo: o trombadinha de Saffron andando com os mulatos da periferia, roubando para ganhar a vida, vivendo o hoje na incerteza do amanhã. Crescera como vagabundo, projeto de bandido, celerado que mais cedo ou mais tarde acabaria como corpo num necrotério, tido como indigente, enviado para pesquisa nos grandes centros de Medicina. Ninguém choraria sua morte. Ele era desimportante demais até para ser número em uma estatística.
E não era como se ele morasse nas ruas ou não tivesse família como aqueles com que se metia, afundados nas drogas, kamikazes pela vida só por não ter nada a perder. Era só que sua família já não importava mais. Sua casa não importava mais. Não com um pai bêbado desperdiçando o pouco que tinham, espancando os filhos até deixá-los desmaiados, as caras deformadas, em meio a poças de sangue para serem achados pelos vizinhos e mandados às pressas aos hospitais. Não com estes cretinos frouxos e fracos que eram seus irmãos, incapazes de dar voz aos seus medos e ira; incapazes de se levantar contra o velho violento e abusivo. Não com esta vida de pobreza onde se vive sempre no presente porque futuro é sonho distante.
Demian tinha dezesseis anos e raramente voltava pra casa. Dormia apinhado ora em cortiços, ora em trapiches abandonados, ora nas sarjetas frias sob a luz das estrelas. Comia o pão que o diabo amassava, mas ainda era melhor do que enfrentar seu velho e seus demônios. Se enfiava em toda sorte de roubada, lutando com unhas e dentes para terminar o dia vivo e bem, longe dos olhos de agressores, da polícia e das gangues rivais.
Agora tremia de nervoso, as mãos suando frio, os cigarros sumindo na carteira. Já havia estado em brigas de gangue antes, abrindo caminho através de sangue e suor, mas nunca temera tanto seu destino. Nem quando a lâmina afiada de um canivete sangrara seu braço de fio a pavio. Nem quando estivera sob a mira dos canos duplos de uma espingarda, correndo com o vento nos pés. Não estavam mais metidos em furtos pequenos ou retomada de território. O idiota autoproclamado líder queria agora meter-se num negócio grande, coisa mesmo pra alavancar a vida, roubando mercadoria contrabandeada. E o carregamento estava vindo lá do norte, trazido em compridos caminhões-baú, escoltado por Rockets.
— Está quase na hora. — Demian murmurou enquanto se levantava, trocando de pés, compulsivo — Quase na hora.
Subiu na mobilete enferrujada que seus comparsas arranjaram. Era um pedaço de lixo, montes de engrenagens caindo aos pedaços, que engasgou e gemeu como uma coisa velha assim que Demian tentou dar-lhe ignição. Na terceira vez, funcionou. Só o pensamento de que daria o maior golpe de sua vida sobre aquela coisa deixava o garoto todo gelado. Ainda assim, Hasse pôs o capacete e partiu.
As luzes da cidade piscavam como centenas de olhos incandescentes, todos o espiando a cometer seus pecados. Os grandes pulmões cancerosos das indústrias cuspiam gordas nuvens de fumaça para o céu plúmbeo do quase-noite. Os carros que iam e vinham eram gânglios nervosos intumescidos nas muitas estradas como veias da cidade-demônio de Saffron. Naquele momento, costurando pelo tráfego na Rodovia Blask, Demian sentia na espinha um arrepio. E o arrepio dizia que seria Saffron a engoli-lo inteiro.
Dirigiu pelo que pareceu uma eternidade; tempo suficiente para que as costas doessem e a bunda ficasse quadrada. Tempo suficiente para que o céu nebuloso fechasse, guinando na direção de uma feia tempestade elétrica. Tempo suficiente para se arrepender de toda a ideia.
Foi então que viu o sinal de luz vindo do meio das árvores que costeavam o asfalto. Era algo tão fraco que uma vista mal treinada passaria batido em meio a todo o brilho cegante da cidade. Mas Demian esperava por isso. Ansiava por isso. Droga, ele só queria fazer o que viera fazer e dar o fora dali. Guiou a moto até as árvores e encostou. Um garoto magricela veio ter com ele.
— Vamos levar aquele caminhão ali. — O molequinho apontou para o menor dos caminhões do comboio — Tu vai na frente e para os caras.
— Onde vocês vão estar, velho?
— Nós vamos dar a volta na rodovia pra fechar o cerco. Tu só tem que parar os caras.
Furtivo como viera o menino se fora, as árvores compridas ocultando sua figura magra.
Hasse desceu a viseira do capacete, voltando a inclinar-se sobre a motocicleta. Acelerou para o asfalto, sentindo o vento rascante cortar seus braços nus, seus joelhos feridos e o nó em sua garganta apertar sem piedade. Os carros que seguiam atrás dos caminhões estavam atulhados de Rockets. Os próprios caminhões-baú exibiam o logotipo da Silph. Co. e Deus sabia que perigos e riquezas o aguardavam lá dentro.
Demian tinha as mãos empapadas de suor. Calafrios subiam e desciam sua espinha, chacoalhando-a como um graveto. Seguiu em frente. Apesar de tudo, em frente. Já não havia volta.
Emparelhou com o caminhão alvo até poder sentir os bafejos calorosos da máquina fumacenta. Buscou, o mais que pôde, manter-se ao nível da porta. Tentativamente, ergueu seu torso. Então, os pés. Foi-se erguendo devagarzinho até estar quase como em pé sobre o assento. Apenas suas mãos ainda o mantinham no controle da moto. Sentiu os primeiros pingos de chuva caírem grossos sobre seus braços, pernas e roupa. Logo a pista se tornaria escorregadia. Logo ele não teria mais oportunidade nenhuma.
Então, num rompante, o menino empurrou o mais que pôde o guidão da mobilete antes de saltar como doido para cima da porta do caminhão. Estatelou feio sobre o metal, as unhas arranhando a lataria, o corpo sentindo todo o peso da gravidade e da inércia sugando-o, tentadas a fazer daquele momento o último. O grito ficou enterrado na garganta; jamais se libertou. As mãos agarraram a maçaneta. A moto espatifou-se sob as grandes rodas, desfeita em estilhaços que zanzaram pela estrada e rebentaram na direção do tráfego. Uns destes pedaços quase acertaram o menino em cheio, mas o próprio motorista desviava deles para conseguir manter-se na estrada.
Foi quando Demian abriu a porta e puxou um pequeno revólver cromado que o homem se deu por vencido. O caminhão parou. O tráfego caótico continuava.
— Sai, perdeu, perdeu! — A mira do revólver oscilava entre o motorista e seu passageiro. — Pro chão, pro chão!
Os dois homens saíram do caminhão, as mãos para cima, submissos à vontade de um garoto. O cano da arma – que podia muito bem ser de brinquedo – dançava de um para outro, trêmula, mas naquele momento Demian se sentia seguro. Tudo daria certo. Ele conseguiria se safar dessa. Um sorriso tentativo surgiu por baixo do capacete. Suas mãos de menino pararam de tremer. Tudo estava bem.
Estava bem antes do ZAP!
A dor foi a de uma chicotada, açoitando-o nas mãos, acertando-o nos punhos; arrancando a arma de seus dedos. Hasse não teve tempo de ver o que o acertara até o revólver já estar muito longe de alcance.
Fora uma planta.
Algo como uma flor gigante em forma de sino, com uma boca flácida trazendo dois dentes afiados. E ao lado daquela aberração botânica estava um homenzarrão vestido de preto, quepe de lado e estampado no peito o símbolo da maior organização criminosa do país.
Um relâmpago iluminou o sorriso sinistro que fez toda confiança de Demian ser lavada pela chuva. Havia se tornado branco como papel por trás do capacete. Suas pernas tremiam. Sua boca tentou chamar por socorro, mas mal as palavras formavam, morriam.
— Então o filhote quer brincar com os cachorros grandes. — Numa voz de trovão que o assustava mais do que estar sob a mira de um revólver.
Em sua idiotice, deu-lhe as costas e desatou a correr.
— Ah, mas não vai mesmo!
BANG!
Um tiro e Hasse fora ao chão, o joelho esquerdo lancinado, o sangue escorrendo com a tempestade. E ainda outro disparo, que acertou-o no direito, forçando todos os gritos suprimidos para fora, misturados ao som da chuva e ao ribombar dos trovões.
Em seu desespero, arrastou-se. Sob o som de risadas e zombaria, rastejou. A dor rasgava sua carne, torturava os tecidos feridos, calcinava seus nervos. Os dedos se enterravam na estrada. O rapaz todo bracejava por segurança. As risadas jocosas sobrepujavam os trovões.
No fundo de sua mente pensou ter ouvido um estalido, algo que soava como CLAC!, mas em sua angústia não teve tempo para atinar com o que quer que fosse. Seu corpo inteiro era um violão desafinado, músculos como cordas muito duras soltando notas de estremecimento à espera da morte.
— Vai Nidoking.
O chão tremeu.
Algo grande estava vindo.
As pesadas passadas do monstro vibravam através da estrada, mandando espasmos de medo na direção do menino caído. Demian conseguiu apenas voltar-se para cima, a boca abrindo em um grito. Mas o grito silenciou pela pisada do gigante em seu peito, esmagando-o, forçando todo o ar para fora. A pata tornou a erguer-se no ar e Hasse soube que morreria ali, como o nada que sempre fora, assistindo ao seu fim enquanto aquela pata como martelo baixava sobre sua cabeça. Quando o Nidoking pisou, seu capacete esmagou; lascas da viseira enterrando em seu olho e face e o sangue vertendo sinuoso. Uma segunda pisada e seu nariz quebrou, explodindo em um vermelho rubro que inundou sua boca e escorreu por seu queixo. Uma terceira e as luzes da consciência falharam.
Desmaiou.
what they said was real,
makes me wanna steal
Demian dormira por tempo demais.
A sensação que se apoderava dele era a de estar submerso em profundas águas, preso por uma pedra atada aos seus pés. Era difícil respirar, pensar; era difícil até mesmo viver e ele se perguntou naquele instante como é que estava sobrevivendo ali embaixo sem oxigênio. Aos poucos a pressão que o prendia foi se desfazendo e a escuridão foi dando lugar a uma luz clara que o alcançava devagar com suas mãos gentis à medida que emergia à superfície.
Hasse dormira por tempo demais, isso ele sabia, e foi essa consciência simples que teve ao acordar, sem nem mesmo abrir os olhos.
Seu corpo doía como se houvesse disputado a maratona cívica de Saffron City e depois achado divertido tentar carregar seus irmãos mais velhos nas costas.
Fez uma primeira tentativa de abrir os olhos e a luz branca que o atingiu fez suas retinas doerem e as pálpebras se fecharem ainda mais cerradas. Resmungou alguma coisa enquanto se contorcia na cama. Havia um pesado cheiro de éter em seu quarto e ele teve ganas de perguntar quem é que havia deixado um vidro de álcool aberto ali dentro.
— Ele acordou.
Só então sua memória voltou com a velocidade de um trem bala chocando-se em uma montanha, tão fresca como limonada gelada em dia de verão.
Ele havia sido deixado por seus ditos amigos para morrer. E por que não morrera? Da última vez que estivera consciente deixar este mundo lhe havia parecido uma certeza.
— Moça... — Sua voz falhava como se houvesse engolido uma bola de pelos. Era um som rascante e visceral.
— Não fala, menino. Você tem que descansar.
— O que... — Engoliu em seco, esforçando-se por formular palavras — O que aconteceu comigo?
A velha de rosto frouxo, com pequeninos olhos de botão comprimidos sob as muitas camadas de pele, deixou um suspiro cair no ar parado entre eles. Apanhara sua ficha de paciente e, a franzir as sobrancelhas finas, disse:
— Vou chamar o doutor.
A porta fechou-se atrás dela com o tinir do trinco, mas a velha permaneceu ali por mais um momento ou dois: a respiração alta de suíno a delatava antes de sua presença finalmente desaparecer e Demian ser deixado outra vez sozinho no quarto de hospital.
À meia luz, enxergava os contornos suaves dos móveis na imensidão vazia do quarto. O cheiro de limpeza e de álcool espiralava pelo ar e impregnava-se em toda e qualquer coisa, recobrindo-o com aquela essência nauseante. Abrir os olhos parecia penoso àquela altura.
Mesmo assim, eles buscavam a janela. O vidro aberto, meio sujo e repleto de marcas de dedo e poeira, trazia uma brisa fraca do lado de fora e os poucos sons do exterior. O buzinar de um carro, um riso de menina, os pássaros. Atrelado à cama, os olhos seguiam com paciência os desenhos dos poucos prédios e das construções baixas.
Como uma vez fizera na infância, buscava formas reconhecíveis nas nuvens.
— Então você acordou. — O típico médico otimista despontara na porta, um sorriso estampado em seu rosto de meia-idade, andando aos saltos como se fosse um gafanhoto.
Demian não teve ânimo de mandá-lo aos infernos. Sentia todo o corpo cansado, o rosto cansado. Podia sentir suas olheiras afundando na face magra. Devia estar com modos de caveira. E havia ainda um curativo grande tampando um de seus olhos. Não poderia aparentar-se mais com um moribundo nem se quisesse. O médico continuou:
— Vamos ver, vamos ver... Seu nome?
— Demian... Demian Hasse. — Num esforço superior.
— Certo Senhor Demian. — Sorriso escarninho aqui e acolá. — Você é o menino que quando o resgate chegou, os paramédicos acharam que houvesse morrido. — Batucar incontrolável sobre a ficha — Você foi atacado por Pokémon. Levou dois tiros nos joelhos. Pode-se dizer que estar vivo agora, Senhor Hasse, é um milagre.
Isso Demian já sabia, nada novo até então. Seu peito subia e descia como se fosse um balão de gás que uma criança asmática tenta furiosamente encher: mal seus pulmões inflavam, murchavam. Havia dor em todo lugar.
— O capacete que você usava teve de ser extraído do seu rosto. Muitos dos pedaços se enterraram na sua carne. Rasgaram um dos seus olhos.
Ergueu as mãos para tocar o lugar onde estava certo de haver um curativo e encontrou apenas a pele do rosto. As pálpebras macias. Os cílios compridos. Nada de gaze, nada de esparadrapos. Seu estômago parecia ter acabado de ser revirado por uma pá.
— Nós substituímos o olho corrompido por um de vidro, Senhor Hasse. — Impessoal, o médico ainda analisava sua ficha — Tivemos que reconstruir o seu nariz, mas ele nunca mais será o que era. Vai ter dificuldades para respirar por ele, Demian, sugiro que use a boca. Quanto aos seus joelhos... Ah, sim! Conseguimos reparar os nervos feridos de um deles, mas o outro... Bem, o outro estava numa situação deplorável. Ainda assim, me orgulho de como o deixei. Vai mancar para o resto da vida, mas pelo menos não perdeu a perna! Haha. Só temíamos que o senhor não acordasse do coma.
Coma.
Essa palavra parecia tão distante, vinda de algum documentário médico ou seriado, que quando Demian viu-se encarando-a de frente como algo que poderia ter-lhe acontecido (e que talvez lhe acontecera), parecia mais como uma passageira sombria sorrindo de algum lugar dentro dele, acenando com suas pequeninas mãos cruéis.
Todas as coisas pareceram sair de foco, girando na velocidade da luz, girando na velocidade de um ônibus tombado. Demian sentiu seu estômago engraçado e, por um momento, imaginou que fosse colocar tudo para fora antes de poder articular a pergunta que tanto queria fazer.
Seu corpo doía, sua cabeça doía. Não era uma dor de cabeça normal. Era uma dor de cabeça extraordinária. Seu cérebro, dali a pouco, viraria pasta de amendoim e poderia ser drenado pelo ouvido.
Mesmo assim, ele tentou o mais que pôde não deixar isso transparecer em sua expressão, comprimindo os olhos tanto quanto lhe era possível e franzindo o cenho para enxergar por trás da dor.
Abriu a boca. Fechou-a. Abriu outra vez.
— Quanto tempo... — Parou. Esperou a dor se acalmar. — Por quanto tempo...
Um suspiro.
— Duas semanas e meia.
E o mundo escureceu outra vez.
livin’ under house
guess I’m livin’, I’m a mouse
Na noite em que resolveu abandonar Saffron Demian encontrou uma tartaruga.
Ele, o menino Hasse, nem havia se recuperado das notícias do hospital. Seu corpo doía, sua perna arrastava mole, um de seus olhos era uma bonita esfera de vidro branco. Sua face esquerda estava fendida da testa ao queixo por cicatrizes compridas. Seu nariz estava torto e inútil; respirava pesadamente pela boca.
Havia fugido do prédio, dos doutores e das enfermeiras e fizera assim seu caminho, derrotado, de volta para casa. Uma última vez, ele jurava. A última vez que colocaria os pés naquela cidade-demônio que o fizera perder tudo. A cidade que lhe dera vida, a cidade que queria tomá-la.
Agora, sob a escuridão negra da noite e o brilho fraco das estrelas, Demian tinha todas as trouxas empaçocadas dentro de uma pequena mochila de viagem. Todo o dinheiro que conseguira achar, roubado dos pais e dos irmãos e de suas reservas pessoais. Todo o resto de dignidade que lhe sobrara.
As ruas escuras, seus becos e vielas projetavam sombras compridas nas paredes e muros de tijolos caídos. Corujas soturnas piavam funestas na calada da noite. As trevas ocultavam toda a depravação de Saffron. Hasse fazia seu caminho, silencioso, quando ouviu risadas. Risadas jocosas que o arrastaram de volta no tempo, sob a mira de um revólver, rastejando pela vida. Sua espinha chacoalhou-se num arrepio, como se isso fosse um pesadelo. Mas o sentimento agora não era mais de desespero. Era de ódio. Um ódio maciço e metálico, que subia pela garganta como mercúrio num termômetro; um ódio que ameaçava explodir uma hora dessas.
Arrastou-se na direção do som só para ver rapazotes da sua idade chutando algo que parecia uma bola azul celeste. E eles riam e riam como hienas. E a bola sangrava. Sangrava e soltava pequenos gemidos de dor. Demian sentiu veias estalarem em sua testa, seguida por uma dor de cabeça terrível.
— Patético. — Ele já não sabia a que se referia. Se aos garotos reunidos pela tortura do pequeno ser, ou se à tartaruga estúpida e indefesa, tão fraca que não podia nem mesmo se levantar. — Patético.
Pôs a mochila no chão e estalou os pulsos, ouvindo os muitos crek crek dos dedos. Havia algo como uma vontade assassina dançando em seus olhos quando ele se aproximou dos meninos. Alguém disse “O que é que esse palhaço quer?” antes de levar um soco tão forte na boca que arrancou um dente. Outro levou um chute nas costelas suficiente para derrubar. E aqueles que se amontoavam ao seu redor não tinham destinos diferentes: acabavam todos cuspindo o sangue que abarrotava na boca, sentindo a fúria de um moleque que já não tinha nada a perder.
— Vamos embora daqui, esse cara é louco! — Correram os delinquentezinhos, deixando Demian para trás, sua raiva longe de aplacar.
— Squir... Squirtle...
A coisa gemia no chão, mas Hasse já lhe havia dado as costas, pego a mochila e voltado a caminhar. A noite se descortinava diante dele e o menino queria andar o mais que suas pernas aguentassem para se ver longe de Saffron.
— Squir-Squirtle.
A dita tartaruga chamou-o repetidas vezes. Insistente, ela pôs-se em pé numa tentativa inútil de segui-lo. Desabou de novo ao chão. Demian voltou-se para trás e viu aquela criatura patética, o corpo coberto de cicatrizes, o sangue vertendo para a terra. Revirou os olhos, desacreditando no que estava fazendo, mas refez o caminho até ela. Agachou-se. Cutucou-a com o dedo.
— Você me deve a sua vida. — Num tom definitivo que não deixava espaço para questionamentos — Se quer me seguir, me seja útil de alguma maneira.
Agarrou-a nas mãos e içou-a até poder deitá-la sobre a sua cabeça. O pequeno ser pareceu agradecê-lo antes de mergulhar na inconsciência, soluçando em meio a um sonho repleto de pesadelos.
Saffron não os viu jamais.
Ele, o menino Hasse, nem havia se recuperado das notícias do hospital. Seu corpo doía, sua perna arrastava mole, um de seus olhos era uma bonita esfera de vidro branco. Sua face esquerda estava fendida da testa ao queixo por cicatrizes compridas. Seu nariz estava torto e inútil; respirava pesadamente pela boca.
Havia fugido do prédio, dos doutores e das enfermeiras e fizera assim seu caminho, derrotado, de volta para casa. Uma última vez, ele jurava. A última vez que colocaria os pés naquela cidade-demônio que o fizera perder tudo. A cidade que lhe dera vida, a cidade que queria tomá-la.
Agora, sob a escuridão negra da noite e o brilho fraco das estrelas, Demian tinha todas as trouxas empaçocadas dentro de uma pequena mochila de viagem. Todo o dinheiro que conseguira achar, roubado dos pais e dos irmãos e de suas reservas pessoais. Todo o resto de dignidade que lhe sobrara.
As ruas escuras, seus becos e vielas projetavam sombras compridas nas paredes e muros de tijolos caídos. Corujas soturnas piavam funestas na calada da noite. As trevas ocultavam toda a depravação de Saffron. Hasse fazia seu caminho, silencioso, quando ouviu risadas. Risadas jocosas que o arrastaram de volta no tempo, sob a mira de um revólver, rastejando pela vida. Sua espinha chacoalhou-se num arrepio, como se isso fosse um pesadelo. Mas o sentimento agora não era mais de desespero. Era de ódio. Um ódio maciço e metálico, que subia pela garganta como mercúrio num termômetro; um ódio que ameaçava explodir uma hora dessas.
Arrastou-se na direção do som só para ver rapazotes da sua idade chutando algo que parecia uma bola azul celeste. E eles riam e riam como hienas. E a bola sangrava. Sangrava e soltava pequenos gemidos de dor. Demian sentiu veias estalarem em sua testa, seguida por uma dor de cabeça terrível.
— Patético. — Ele já não sabia a que se referia. Se aos garotos reunidos pela tortura do pequeno ser, ou se à tartaruga estúpida e indefesa, tão fraca que não podia nem mesmo se levantar. — Patético.
Pôs a mochila no chão e estalou os pulsos, ouvindo os muitos crek crek dos dedos. Havia algo como uma vontade assassina dançando em seus olhos quando ele se aproximou dos meninos. Alguém disse “O que é que esse palhaço quer?” antes de levar um soco tão forte na boca que arrancou um dente. Outro levou um chute nas costelas suficiente para derrubar. E aqueles que se amontoavam ao seu redor não tinham destinos diferentes: acabavam todos cuspindo o sangue que abarrotava na boca, sentindo a fúria de um moleque que já não tinha nada a perder.
— Vamos embora daqui, esse cara é louco! — Correram os delinquentezinhos, deixando Demian para trás, sua raiva longe de aplacar.
— Squir... Squirtle...
A coisa gemia no chão, mas Hasse já lhe havia dado as costas, pego a mochila e voltado a caminhar. A noite se descortinava diante dele e o menino queria andar o mais que suas pernas aguentassem para se ver longe de Saffron.
— Squir-Squirtle.
A dita tartaruga chamou-o repetidas vezes. Insistente, ela pôs-se em pé numa tentativa inútil de segui-lo. Desabou de novo ao chão. Demian voltou-se para trás e viu aquela criatura patética, o corpo coberto de cicatrizes, o sangue vertendo para a terra. Revirou os olhos, desacreditando no que estava fazendo, mas refez o caminho até ela. Agachou-se. Cutucou-a com o dedo.
— Você me deve a sua vida. — Num tom definitivo que não deixava espaço para questionamentos — Se quer me seguir, me seja útil de alguma maneira.
Agarrou-a nas mãos e içou-a até poder deitá-la sobre a sua cabeça. O pequeno ser pareceu agradecê-lo antes de mergulhar na inconsciência, soluçando em meio a um sonho repleto de pesadelos.
Saffron não os viu jamais.
[ dez anos depois ]
all’s I got is time,
got no meaning, just a rhyme