Nova Jornada do Tec'

 
 
Como havia acabado aqui? Esta e outras perguntas eu já não tinha como responder, seguindo em frente neste caminho que não levava a lugar algum.
 
A floresta densa era meu cenário de horror. As árvores, gigantescas e aterradoras, traziam copas frondosas que se perdiam em meio às nuvens do céu. As sombras evocavam imagens de monstros e assombrações. O ar parado carregava um cheiro putrefato de decomposição: eram folhas, musgo e pokémon mortos que criavam aquela essência nauseabunda que me deixava enjoado e infeliz.
 
Por onde quer que eu andasse apenas a escuridão me saudava em resposta. As noites e os dias nesta floresta não se distinguiam: caminhava há tempos sob um breu sem fim. Meus olhos, nostálgicos, procuravam o brilho da lua e das estrelas. O calor do sol. O fulgor do dia. Mas tudo o que eu encontrava era essa imensidão negra, maciça o bastante para se cortar com faca.
 
Havia tirado Braixen de sua pokébola e a única luz que me guiava era a do fogo onírico que crepitava intensa na ponta de seu galho. Ela andava imponente, seus pezinhos de raposa tocando a terra úmida como que enojados, abrindo caminho. Andava na frente, sempre. O brilho do fogo era o bastante apenas para que eu não tropeçasse a todo instante em raízes ou desse com a cara numa árvore ou num tronco mal colocado. Um raio de três metros, se muito. Fora isso, não enxergava adiante um palmo sequer.
 
Por que eu não dera atenção às lendas? Os moradores da pacata vilazinha bem que tentaram me dizer que não era seguro; que eu nunca deveria ter entrado naquele reino de ninguém. Fantasmasdisseram. Espíritos de pokémon abandonados. Aquele, diziam, era um solo sagrado. Humanos não eram permitidos nesse imenso cemitério pokémon. Um santuário... Mas não poderia haver aqui grandes tesouros e riquezas? Uns falavam sobre uma civilização perdida. Outros falavam sobre pokémon lendários. Por mais que os contos fossem agourentos, eu sentia crepitar em mim o fogo da aventura.
 
Agora eu me arrependia de não ter dado ouvidos à razão. Estava gelado como a morte, faminto e infeliz. Um vento sepulcral uivava por entre as árvores, contando histórias de morte e desolação. Dizendo que eu seria mais um cadáver a ser enterrado ali. O pensamento enviava um arrepio frio pela minha espinha; fazia-me tremer como um graveto e Braixen analisava a tudo com seus olhos perspicazes, atenta a cada pequeno movimento e som. A floresta inteira parecia respirar, como uma coisa viva. A pokémon resmungava, mal humorada e impaciente.
 
— Eu sei que foi uma ideia idiota. — Ao que ela pareceu concordar, satisfeita — Mas vou tirar a gente daqui, prometo
 
Minha raposinha ranzinza não parecia convencida. A bem da verdade, nem eu estava. A promessa era mais uma frase otimista do que um pensamento concreto: eu temia jamais poder ver a luz do sol outra vez.
 
Andei ainda pelo que pareceram horas. Minhas pernas já não aguentavam mais dar um passo sequer. Ainda assim, me esforçava por seguir em frente. Mais um pouco,pensava. Mais um pouco e descansarei. Era mentira, claro. Uma mentirinha branca para driblar o cansaço. O dito descanso jamais veio.
 
Quando eu acreditava que desabaria e meus joelhos cederiam vi ao longe uma luz. A princípio meu desespero me fez acreditar que era a saída. Encontrei energia para correr. Um sorriso estampou meu rosto, rasgado de orelha a orelha. Se eu estivesse pensando teria percebido que Braixen não me seguia com o mesmo entusiasmo. Mas não estava. Tudo o que eu queria era sair daquela floresta maldita.
 
O brilho vinha de uma clareira. Meus passos morreram à medida que me aproximava; toda a animação que eu sentira agora calada, muda, dando lugar a um profundo sentimento de pavor. Sabia pelo menos de uma coisa: aquela não era a saída.
 
O descampado parecia ter sido causado, muito tempo antes, por um incêndio. O solo era enegrecido e feio, as plantas não cresciam, as raízes jaziam pelos cantos, mortas. Tocos de árvores esparsos pontuavam a clareira aqui e acolá, contorcidos em caretas torturadas. Os carvalhos gigantes que ladeavam a falha da floresta tinham os troncos chamuscados, arranhados; as cascas soltas feridas por grandes marcas de garras. E aquele era palco agora de uma batalha entre dois monstros.
 
O que me fez tremer e congelar foi o urro de um daqueles grandes dragões. Um grito do fundo do peito, com uma força sônica capaz de envergar mesmo as árvores centenárias. Folhas, galhos e terra voaram pelos ares; meus cabelos serpearam para trás. As asas das criaturas frapejavam numa dança cruel. E o que eu vira antes se repetia agora: um ciclone de vento, brilhando purpúreo em torno de um daqueles horríveis dragões.
 
Eu não pude ver o que aconteceu. Num instante, a energia se concentrava, queimando com a força de mil sóis. No outro a luz tomou conta de tudo e o fogo espalhou-se por toda a clareira, numa explosão roxa de calor e poder. O outro dragão tinha agora queimaduras por todo o corpo, mas sua fúria estava longe de aplacar. Avançara para o outro num rompante, as três bocas ferozes abertas e ameaçadoras, e se atracara com o pescoço do maior. Os dois caíram, rolando pelo chão, até baterem contra as árvores. Sangue escorria de um e de outro naquela batalha até a morte. Os dentes que mordiam não soltavam.
 
— Vamos dar o fora daqui.
 
Foi meu sussurro quase inaudível para Braixen, que não poderia estar mais feliz em concordar. Nós dois não éramos páreos para aquela dupla de gigantes, nem tínhamos porque nos meter na briga de dois Hydreigon. Eles que se entendessem ou se matassem no processo. Eu só queria viver.
 
Pé ante pé, procurando não chamar a atenção, voltei-me para ir embora. Mas nem bem dei meia-volta trombei com uma pequenina coisa em meu caminho.
 
Uma Deino.
 
Minha pokedéx, automática, realizou a leitura do bicho e a irritante voz eletrônica irrompeu dos alto-falantes antes que eu pudesse tirá-la do bolso:
 
“Deino: o pokémon enfurecido. Não pode ver, então tromba e morde para aprender sobre aquilo que o rodeia. Seu corpo é coberto de feridas.”
 
Muito didático, admito, já que a coisa se agarrara em meu braço, mordendo-o como se sua vida dependesse disso. Soltei um quase grito antes de perceber que isso seria minha morte. Então mordi os lábios e contive minha voz, embora lágrimas mornas enchessem meus olhos. Aqueles dentes afiados estavam perfurando minha carne, se enterrando pela pele, e o sangue escorria em filetes que pingavam para o chão. Mas antes isso do que ter aqueles dois grandalhões pondo meu pescoço a preço.
 
— Solta, solta! — Tentei chacoalhar, mas o bicho só fez morder mais forte— AH! Para com isso!
 
Braixen, nervosa, assistia-nos sem saber o que fazer. Seus olhos estalados denunciavam seu medo. Ela era tão bonita e jovem... jovem demais pra morrer. Como se só pensasse agora, resolvi chamá-la de volta e fuçar em meus bolsos por uma outra pokébola. A pokébola de Ninjask.
 
Num estouro e numa luz vermelha, o inseto se materializara ali.
 
[/color]

 
 
 
— Swords Dance!
 
Meu pokémon executou uma dança e seus movimentos lembravam os cavaleiros das Cruzadas, com suas armas e fúria próprias do medievo. A ilusão que tive ao ver Ninjask foi a de que as lâminas das espadas brilhavam no ar e se cruzavam, ofensivas; hostis. O pokémon parecia agora mais forte e sua aura intimidava.
 
Sentindo que seria atacado, Deino resolvera largar do meu braço. Caí para trás em alívio, minha mão tentando estacar o sangue, meus pés ansiosos por interpor entre nós alguma distância. A selvagem, com um urro, agitou as patas dianteiras no ar num perfeito Work Up. Seguindo-o pelo som, afrontava Ninjask com a mesma fúria do meu companheiro.
 
— Use Dig!
 
Preocupado com o sangramento mal dava atenção às ordens que dizia. Ninjask, no entanto, pareceu não perceber: antes, resolveu seguir aquilo que eu dissera. Suas patas ágeis cavaram o chão, céleres, bem no instante em que Deino preparava-se para um Crunch. A dragãozinho correra num estouro de fúria, saltara para Ninjask e mordera... apenas o ar. Meu pokémon já havia entrado na terra e se esquivado do ataque. Cavando com afinco, o bicho conseguira emergir e acertar Deino em cheio. A selvagem caíra a um canto, arremessado pelo chão até bater em uma árvore.
 
Irritada, levantou-se. Seu corpo todo tremia. Se de ódio ou dor, já não sabia dizer. Ela brilhava inteira numa luz branca, feroz. Com toda a força e velocidade que conseguira reunir, Deino atacou Ninjask com seu Dragon Rush. Meu pokémon foi mandado longe, batendo pesado contra o tronco de um carvalho, caindo no chão dolorido e machucado.
 
Rangi meus dentes. Era hora de começar a pensar ou estaríamos todos perdidos. Pense, pense!
 
— Já sei! Ninjask, ative sua habilidade! Speed Boost vai te fazer atacar primeiro! Então corte-o com seu Slash!
 
Ao ativar sua habilidade, Ninjask tornou-se mais rápido. Mesmo que Deino já tivesse um ataque pronto, num acesso de fúria, meu companheiro foi capaz de atacar primeiro. Suas garras brilharam, afiadas, e ele voou a toda velocidade para o dragão. Um corte. Outro. E outro e outro e outro, sucessivos no rosto de um Deino que gania de dor. Incapaz de aguentar, ele caíra à terra; trêmulo, fraco.
 
Ninjask e eu havíamos vencido. Não havia mais motivos para continuarmos lutando. Deino mal podia se mover.
 

[color=#C4C4C4]
 
 
Eu me apiedei daquela criatura, tão fraca agora e indefesa. Se Deino ficasse ali o que poderia acontecer? Ela provavelmente acabaria vítima de um predador mais forte: viraria comida de outros pokémon num abrir e fechar de olhos. Não podia fazer isso com ela. Então, puxei de um dos meus bolsos uma pokébola e a lancei no ar. A esfera tratou de sugar Deino para o seu interior, prendendo-a ali dentro; capturada.
 
— Agora você vai ser minha amiga, menina.
 
Resolvi colocá-la de volta ao chão e ajudá-la a recuperar-se com uma poção de cura. Ela bebeu aquilo que eu lhe dei e, na mesma hora, pareceu rejuvenescida e bem. Ela até se pusera a saltar ao meu redor, como um cãozinho que faz charme ao seu dono. Eu ri, ri alto, imaginando se aquela era a mesma criatura que se atracara antes com meu braço. Ela não fizera por mal, sabia, mas mesmo assim era hilariante.
 
E hilariante era o sopro do dragão atrás de mim.
 
Voltei-me congelado em terror, sentindo aquela respiração calorífera irradiando medo em cada célula minha. O Hydreigon gigantesco que me olhava estava ferido da batalha, sangrando, mas seus olhos carregavam uma ira descomunal. Eu tremia como vara verde.
 
— S-sebo nas canelas!
 
Gritei e corri. Corri como nunca havia corrido em toda minha vida, tão rápido agora quanto um raio que estoura do céu. A minha Deino corria ao meu lado, divertida, achando que aquilo tudo era uma grande brincadeira. O Hydreigon furioso voava em meu encalço, mandando rajadas de fogo que lambiam meu rosto e queimavam meus cabelos. Eu tentava desviar desses ataques como podia, mas era humano: ou corria ou desviava. Muitas vezes os fundilhos das minhas calças ficaram em chamas e eu tive que os apagar com as mãos.
 
Por quanto tempo corri? Já não sabia. Só sabia que esse delírio pela sobrevivência era a única coisa que me fazia seguir em frente. Assim que eu estivesse seguro, cairia de cara no primeiro lugar e desmaiaria. Mas agora eu precisava continuar em frente, sempre em frente, correndo sem saber pra onde. No escuro, eu topava com todo tipo de coisa: galhos, troncos, raízes. Nada daquilo me fazia desistir de correr ou diminuir o passo.
 
Num milagre eu achei a saída da floresta. Não me perguntem como isto aconteceu: num instante eu corria através da vegetação densa, no outro via a pequena vila. Era só atravessar uma colina e eu estaria lá. Alguém poderia me ajudar uma vez que eu chegasse junto ao vilarejo.
 
Por um insano momento, achei que houvesse despistado o Hydreigon. Eu continuara a correr, mas quando olhara para trás não vira nem sinal do pokémon dragão. Minha Deino parecia rir, mas eu não via nada de engraçado. Dei-lhe um cascudo para ver se ela tomava jeito e ela me mordeu na mão, brincalhona.
 
Cheguei ao vilarejo um verdadeiro caco. Não podia nem mais mover minhas pernas. A adrenalina abandonara meu corpo e deixara esta casca vazia. Meu espírito havia me abandonado; eu estava para ver o momento em que ficaria cara a cara com minha alma, subindo aos céus. Andei até chegar à praça principal, construída em torno de um poço. Pus minha Deino sobre o apoio de pedra e me escorei ali, tentando reganhar a compostura.
 
— Nunca mais... — Arfava, sem fôlego — Nunca mais entro em florestas proibidas.
 
Só que o pesadelo estava longe de acabar.
 
O urro dos dragões fez-se ouvir na noite outra vez. Agora, os vilões saíram todos nas janelas, temerosos. Alguns saíram até mesmo às portas, encarando a noite com olhos que prenunciavam tragédias. E a tragédia não demorou a acontecer.
 
Quando vi os dois Hydreigon atracados novamente um ao outro, entendi porque um deles parara de me perseguir. O que antes fugira agora retornara e queria resolver o assunto com o meu perseguidor. Estavam, de novo, mordendo o pescoço um do outro, ansiosos por rasgar a carne e despedaçar artérias. As duas feras giraram pelo frio ar da noite, até que caíram pesadas sobre o teto de uma igreja. Destruíram tudo em seu caminho, levando telhas e vigas, desabando sobre o chão da praça.
 
— Santa Maria mãe de Deus! — Uma senhorazinha se benzeu.
 
— É tudo culpa dele! Ele invadiu a floresta e perturbou os dragões!
 
E apontaram para mim. Engoli em seco. O que iria fazer? A culpa era minha mesmo e eu não negava. Tanto não negava que iria resolver a situação. Mas como?
 
— A Deino! — A senhora gritou— Estas gigantes estão brigando pra saber quem é a mãe delas, não percebe, ô cabeça oca?
 
O quê? Não eram machos, mas fêmeas que brigavam pelo filhote? Olhei desesperado para minha Deino e ela me encarou, risonha. Em que enrascada eu havia me metido?
 
A luta das Hydreigon continuava feroz como antes. A vila ia se tornando um cenário de destruição por onde quer que elas passassem. Os vilões todos choravam em pavor e desolação, assistindo ao trabalho de uma vida desaparecer diante de seus olhos. As duas dragão sangravam, as duas sofriam, mas só uma sairia vitoriosa. Percebendo isso, a maior resolveu partir para uma estratégia diferente. Se ela não podia ter o filhote, então que ninguém pudesse! Era melhor que a Deino morresse do que vê-la sob os cuidados de sua rival.
 
Assim, a Hydreigon alçou um voo rasante para mim e para Deino. Eu consegui abaixar-me e pegar minha pokémon, apertando-a junto ao peito. Não podia deixar que aquilo acontecesse! A dragão que antes lutava com esta tentara voar desesperada para se interpor nesta batalha, mas a outra era rápida demais.
 
Percebendo que eu não desistiria de proteger a pequena, Hydreigon me colocou como alvo também: que eu morresse junto com Deino. O corpo da pokémon dragão brilhou inteiro numa aura vermelha maléfica. Ela exalava um poder horrível, um vórtice de maldade. Então, num rompante, ela viera para mim em disparada, num Outrage perfeito.
 
— Enquanto eu viver você não toca nesta Deino!
 
Gritei com uma coragem que não sentia. A morte era iminente agora que eu me apertava a Deino e que esta tremia sob meu aperto, cônscia da seriedade da situação. Eu estava morto, morto...
 
Mas a morte nunca veio.
 
A outra Hydreigon me protegera, como um escudo, colocando seu corpo na frente e recebendo o ataque que a matou. Ela caíra, sangrando e, em seu último esforço, tentara alcançar Deino. A minha pokémon saltou dos meus braços, chorosa, e lambeu as feridas da Hydreigon que morria. Quando ela fechou os olhos eu sabia de duas coisas: aquela era a verdadeira mãe de Deino. E eu faria Hydreigon pagar.
 
Agora quem estava furioso era eu. Quem devia temer era aquela Hydreigon. Minha fúria se equiparava à dela.
 
— Nós vamos vingar sua mãe, Deino! — Minha pokémon pôs-se pronta para a batalha, deixando o corpo inerte de sua progenitora para trás — Faremos justiça! Dragon Rush!
 
Exausta da batalha contra a Hydreigon que jazia morta, a pokémon dragão não resistiu ao ataque de Deino. Quando a pequenina correra para ela num rompante, o corpo todo brilhando numa luz caótica, a Hydreigon desfalecera, caindo inconsciente no chão.
 
Cheguei perto daquele bicho gigante e constatei o que já sabia: ela também morrera.
 
Ali, entre o corpo daquelas duas gigantes, em meio ao cenário de desolação que era a vila agora e entre todos os rostos assustados e incrédulos dos vilões, eu me sentei e chorei. Chorei por tanto tempo que achei que fosse desmaiar. Deino se achegara ao meu peito, infeliz, mordiscando meu ombro.
 
— Minha culpa, minha culpa...
 
Ninguém ousou dizer palavra.